A Voz que Enterrou a Ditadura

Muito mais que marketing político

A Voz que Enterrou a Ditadura

julho 1, 2025 Política 0

Ulysses Guimarães e o Discurso da Constituição Cidadã

Em 5 de outubro de 1988, o Brasil ouviu, em uníssono, a declaração solene que marcaria o fim de uma era e o início de outra:

“Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo.”

A frase, lançada com firmeza por Ulysses Guimarães, presidente da Assembleia Nacional Constituinte, ressoou pelo plenário do Congresso como um grito de libertação. Mais do que uma fala institucional, aquele discurso foi um ato de fundação simbólica da democracia brasileira. Um ponto de ruptura. Um corte histórico entre o medo e a esperança.

O Brasil que antecede a fala

Para entender o peso daquele momento, é preciso lembrar do que veio antes. O Brasil de 1988 carregava as marcas profundas de 21 anos de ditadura militar (1964–1985). Um período de censura, tortura, cassações, desaparecimentos e silêncio imposto à sociedade. Durante duas décadas, a Constituição havia sido usada como instrumento de repressão, não de proteção.

Nos anos 1980, essa ordem começou a ruir. A crise econômica, a estagnação, o fim do “milagre” e o crescimento das mobilizações civis abriram as brechas para a transição. O país foi às ruas com as Diretas Já, pediu eleições, exigiu a volta das liberdades. E mesmo com a morte de Tancredo Neves antes de tomar posse em 1985, a democracia seguiu seu curso.

A elaboração de uma nova Constituição era, portanto, necessária não só do ponto de vista jurídico, mas profundamente simbólica: era preciso enterrar, com palavras, o autoritarismo.

A Constituição Cidadã: um pacto coletivo

A Assembleia Nacional Constituinte, instalada em 1987, reuniu parlamentares de todas as vertentes políticas, com intensa participação popular. Mais de 100 mil sugestões foram enviadas por sindicatos, movimentos sociais, igrejas, universidades e cidadãos comuns. Foi a primeira vez em que o povo brasileiro influenciou diretamente a escrita da lei maior do país.

Ulysses Guimarães, então presidente da Constituinte, liderou esse processo com autoridade, equilíbrio e uma rara compreensão do momento histórico. Ao final, o texto aprovado trouxe garantias inéditas de direitos civis, sociais, trabalhistas e ambientais, além de consolidar os pilares do Estado Democrático de Direito.

Mas o que deu alma a esse texto técnico foi a fala de Ulysses.

O discurso: entre razão e emoção

O discurso de promulgação é ao mesmo tempo institucional e apaixonado. Nele, Ulysses articula a lógica jurídica com a emoção cívica de quem viveu e resistiu ao arbítrio.

Ele reafirma o compromisso democrático com frases como:

“A persistência da Constituição é a sobrevivência da democracia.”

Ao mesmo tempo, faz questão de confrontar o passado com contundência:

“Traidor da Constituição é traidor da pátria.”

A sua fala é clara, acessível, direta. Evita o jargão jurídico e se dirige ao povo. Usa o momento como um rito de passagem coletivo, uma espécie de batismo democrático. Chama a nova Carta de “Constituição Cidadã”, conceito que extrapola o legalismo e aponta para um novo pacto social: mais justo, mais plural, mais humano.

O que vem depois

Após o discurso, o Brasil entrou oficialmente na era das eleições diretas, da liberdade de imprensa, do voto universal, dos direitos trabalhistas consolidados. A nova Constituição passou a ser o centro das disputas e da construção institucional do país.

Ulysses Guimarães nunca foi presidente da República, mas se tornou símbolo moral da democracia brasileira. Sua morte, em 1992, selou um ciclo histórico — o mesmo ano em que o presidente eleito por voto direto, Fernando Collor, sofreria impeachment. Mais uma vez, a Constituição prevaleceu.

Um marco que resiste ao tempo

Hoje, décadas depois, o discurso de Ulysses ainda é citado sempre que a democracia brasileira é colocada à prova. Sua fala permanece como um alerta e uma promessa. É lembrada por juristas, professores, jornalistas e cidadãos como um dos momentos mais altos da política brasileira.Ele soube dar forma, tom e significado a um momento que, por si só, já era histórico. E ao fazer isso, legou ao país uma fala que mistura coragem, clareza, emoção e dever institucional — tudo o que um grande discurso precisa ter.

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